Hoje trazemos aqui um tema bastante interessante,
da autoria do Sr. Padre José Tolentino de Mendonça, o qual achamos pertinente lançar aqui no blog:
O que torna uma obra de arte uma obra religiosa?
"Toda a minha obra é religiosa"
Henri Matisse
1. Depois do sigilo divino esboçado nas Catacumbas, depois do ouro bizantino, da soberana epifania dos ícones, depois do Românico e do Gótico, do Barroco e de tudo o que, Modernidade adentro, se seguiu, torna-se imperioso perguntar: o que é que nos dá, na relação com uma obra de arte, a consciência de estarmos também diante de uma obra religiosa?
2. O século XX deve ao teólogo que orientou a tese de doutoramento de Adorno, Paul Tillich, a resposta mais esclarecedora. Ousando contrariar séculos de redundância, ele defende que aquilo que une Arte e Religião não é, em última análise, o motivo tratado, mas sim o estilo. Não basta moldar um crucifixo ou um santo, nem escolher como tópico da produção artística uma cena bíblica. Precisamente um entendimento assim conduziu à banalidade e à dispersão que avultam na representação do sagrado. Segundo Tillich, “o estilo artístico encontra em si mesmo uma significação religiosa”. Esta, ou existe no interior dele ou não existe de todo, pois não pode ser infundida, nem acrescentada. Nessa linha, a frase certeira de Matisse: “Na Arte, o que se pode dizer por palavras não conta”. O estilo é que constitui a genuína “experiência do Espírito”, o fluxo de criação que faz estalar pelo fundo da forma “os limites da forma”, que torna o visível invisível e, talvez, e talvez, vice-versa.
3. O que torna uma obra de arte uma obra religiosa? Não é o primado do tema, nem o contexto de produção, exposição e uso. Cristina Campo, leitora devotada de Tillich, diria que o determinante está na categoria de “imperdoável”: nessa respiração não contemporânea e mesmo em ruptura com o seu contexto, que a faz mover em incontestável paixão pelo absoluto. “O que é não se pode dizer / pode-se dizer o que não é”, avisa o provérbio, pois daqui para a frente o que se disser por palavras não conta. Mas algumas imagens que a escritora italiana descobre trazem em nosso socorro o indizível: a da seta que em nenhum momento é mais imóvel do que em pleno voo, a dos olhos que «fitaram a beleza e não fugiram dela». Sobre as representações precisamente, já o místico Angelus Silesius escrevera, exortando (estranhamente?) não a um convicto apego, mas a uma sereníssima indiferença: “Só para quem o nada for tudo, e o tudo for nada poderá compreender a face de Deus”.
4. O que torna uma obra de arte uma obra religiosa? Acompanhando as pinturas de Ilda David', nos magníficos espaços da Capela e Claustro do Seminário Conciliar de Braga, é essa pergunta que regressa, uma e outra vez. Reconheço em cada pintura o motivo teológico; sou capaz de ler, por estas imagens, as pregas da narrativa bíblica; folheio, do mesmo modo que vejo, do mesmo modo que oiço, a sintaxe inapagável de Paulo. Mas é isso? E é isso que me prende? É isso que me dá a vontade de fazer aquilo que Hegel dizia que a Arte do nosso tempo já não faz, colocar-nos de repente de joelhos?
5. O que torna estas obras uma obra religiosa? Sei, como São Paulo diria, “com temor e tremor” (FI 2,12) , que a natureza religiosa destas tábuas não lhes advém directamente do motivo que elaboram, mas do modo, do estilo com que o fazem, e que nelas é um segredo, anterior, interior, até recôndito. Estas superfícies entreabertas e instáveis, como se sofressem um permanente abalo, radicalizam a dificuldade da representação. Se já é tarefa árdua, num território seguro, fazer emergir a figura, quanto mais no estilhaçado, no íngreme, no desfeito, como aqui continuamente se tenta! É como quem levasse até ao extremo a impossibilidade de nomear, para aí então encontrar o possível da nomeação. Como quem calasse para só então proferir. A Palavra viva?
José Tolentino Mendonça 08.06.09
In Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
http://www.portal.ecclesia.pt/ecclesiaout/snpcultura/tvb_o_que_torna_uma_obra_de_arte_uma_obra_religiosa.html
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terça-feira, 9 de junho de 2009
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